VALE DA CANDEEIRA
um dos mais remotos e imponentes vales de origem glaciária da Serra da Estrela
Vale da Candeeira
O Vale da Candeeira, encravado entre o Cântaro Gordo e o grande Planalto Central da Serra da Estrela, despenha-se discretamente sobre o bem mais conhecido Vale Glaciário do Zêzere. Sem acesso por estrada (e nem linha de vista desde o asfalto), vai-se mantendo como um dos últimos redutos selvagens da nossa maior montanha.
Para chegar ao Vale da Candeeira existem vários trilhos possíveis, mas todos eles apenas podem ser percorridos a pé. O acesso mais comum é feito desde o Covão d’Ametade, mas também existem trilhos de ligação desde o Vale do Zêzere, da Fonte dos Perus, da Lagoa Comprida ou da Nave da Mestra.
Os trilhos que percorrem ou permitem o acesso ao Vale da Candeeira são “mais ou menos” sinalizados e pertencem à rede de percursos pedestres Manteigas Trilhos Verdes, mais especificamente à pequena rota PR5 MTG – Rota do Maciço Central. No entanto, a sinalização pintada (marcas amarelas e vermelhas) nem sempre é suficientemente visível (ou sequer existente) e é recomendado o uso de GPS, excepto para quem já conhece mesmo muito bem a Serra.
Para além destas marcações “oficiais”, quase sempre vão existindo mariolas (pequenos montes de pedras – ou até pedras isoladas – estrategicamente colocadas) que são normalmente visíveis a grande distância e permitem ir sempre mantendo o sentido do caminho certo. Depois de treinado o olho, as mariolas são de longe uma melhor forma de sinalização que as marcações pintadas – mais visíveis, mais duráveis, mais económicas de manter e mais integradas na paisagem.
Para explorar o Vale da Candeeira, podemos jogar com as várias veredas existentes e desenhar o nosso percurso ou optar pela rota circular, tal como sugerido pela PR5 dos Trilhos Verdes de Manteigas.
Numa alternativa menos exigente para ir espreitar a Candeeira (mas ainda assim não acessível a toda a gente), podemos descer desde a Fonte dos Perus ao Fragão do Poio dos Cães, um magnífico miradouro sobre a Candeeira e a Lagoa do Pachão, regressando depois pelo mesmo trilho. Não chegaremos propriamente a descer ao vale, mas já dá para sentir a grandiosidade do Vale da Candeeira.
A rota circular PR5 MTG – Rota do Maciço Central é um percurso de elevada exigência física e técnica, apenas aconselhável a quem tenha suficiente experiência em caminhar na montanha (ou que seja guiado por alguém com a devida experiência). Não é caso para usar cordas, mas existem muitas passagens onde é necessário usar as mãos para trepar ou destrepar obstáculos e o grau de dificuldade aumenta em muito quando as condições sejam invernais.
Toda a rota decorre acima dos 1400 metros de altitude e em terreno de difícil orientação quando as condições de visibilidade são reduzidas, pelo que qualquer situação de risco deverá ser levada a sério. No Inverno é frequente existir neve em pelo menos parte do percurso, assim como acumulação de gelo que pode complicar ou impedir a progressão. Além disso, durante períodos mais chuvosos ou no degelo, a ribeira da Candeeira pode ser um obstáculo complicado ou impossível de atravessar.
A rota começa no Covão d’Ametade e pode ser feita em qualquer dos seus sentidos, com vantagens e desvantagens para cada lado. No sentido dos ponteiros do relógio, tem a vantagem (ou desvantagem!) de fazer logo de início toda a subida ao Cântaro Gordo.
Mas se optarmos pelo sentido contrário, temos o privilégio de ir descobrindo o Vale da Candeeira “desde baixo”, fazer a pausa no Fragão do Poio dos Cães para ver de cima tudo o que já percorremos e seguir rumo ao Cântaro Gordo, com a trepada (opcional) ao cume através da aresta Oeste, que para mim é uma das trepadas mais espectaculares da Serra da Estrela. Neste artigo vou descrever a rota neste segundo sentido.
Os 10.1km da rota são quase apenas uma curiosidade de trivia, pois as montanhas não se medem aos palmos. Ao longo da rota, poucas vezes iremos caminhar em campo aberto e as sucessivas dificuldades implicam contar com um mínimo de 8 horas, já contando com algumas pausas “obrigatórias” para ir desfrutando da Serra.
Seja Verão ou Inverno, é uma rota de montanha “a sério” e, para além da experiência e da boa forma física, é importante ir bem preparado para qualquer eventualidade. No fim do artigo, deixo algumas dicas sobre o equipamento recomendado e sobre o que não pode faltar na mochila.
Fraga da Albergaria
A começar no Covão d’Ametade e seguindo no sentido contrário aos ponteiros do relógio (o sentido que prefiro e recomendo), a irregularidade natural do trilho dá logo a entender que esta rota não é para todos. Trepar e destrepar calhaus, olhar onde metemos os pés e sempre com atenção para não escorregar nas lajes de granito que estejam molhadas ou cobertas de gelo. A orientação aqui ainda não é complicada, mas mesmo assim – se nos distrairmos – facilmente saímos do trilho.
No topo da Fraga da Albergaria é tempo de fazer uma pausa. Não porque já tenhamos andado muito, mas porque a vista dali para o Covão d’Ametade encravado entre os Cântaros é simplesmente fantástica. Abaixo de nós, o Covão da Albergaria, que constitui o terceiro “ressalto” de origem glaciária do Vale do Zêzere (o primeiro é o Covão Cimeiro e o segundo o próprio Covão d’Ametade).
Vale das Candeeirinhas
O trilho continua a circundar a encosta e rapidamente chegamos ao Vale das Candeeirinhas, uma pequena depressão que terá sido escavada pelos glaciares que aqui escorregavam até há 14 000 anos atrás. No auge da última glaciação (que terá ocorrido há 30 000 anos), estima-se que a neve e gelo que se acumulavam no Planalto Superior formassem uma capa com 90 metros de espessura e que escorria lentamente de forma radial pelos vales que derivam do planalto. De acordo com as modelações feitas, apenas o topo dos Cântaros Magro e Gordo ficaria de fora destas massas de neve e gelo.
O trilho continua em subida gradual, contornando a encosta. Do Vale das Candeeirinhas, a vista para o Cântaro Gordo é fantástica e daqui, ao contrário da vista desde o Covão d’Ametade, já dá para ter uma ideia da real imponência do mais gordo dos Cântaros.
Um pouco mais à frente há um cruzamento sinalizado que indica o trilho para a Lagoa do Cântaro. Este trilho não se encontra sinalizado (apenas vão existindo algumas mariolas dispersas) e nem sempre se encontra devidamente limpo, pelo que se recomenda caução na visita à Lagoa. Posteriormente dedicarei um artigo a esta lagoa, que é uma das minhas preferidas na Serra da Estrela. Mas este outro trilho também permite um acesso alternativo ao Vale da Candeeira (ver mapa), que infelizmente tem sido deixado ao abandono, apesar de até ser uma muito melhor opção que o trilho “oficial” do PR5 MTG e que aqui vamos seguir.
Queres saber mais sobre o que vestir para caminhar na montanha?
Segue o link e lê o artigo que escrevi para o site da Decathlon!
Vale da Candeeira
Seguindo caminho, há agora que trepar e contornar a linha de festo que separa as águas das Candeeirinhas e da Candeeira, e que outrora terá dividido as massas de gelo que escorriam lentamente montanha abaixo. Será preciso usar as mãos uma vez ou outra para ultrapassar alguns ressaltos no trilho, mas nada de grande dificuldade.
Contornada a cumeada, avistamos pela primeira vez o magnífico Vale da Candeeira! A descida é íngreme e obriga a muita atenção a onde vamos colocando os pés, em particular num troço de rocha nua e que durante o Inverno oferece um risco redobrado. Por estar virada (quase) a Norte, durante o Inverno esta encosta encontra-se frequentemente gelada (ou pelo menos molhada) e pode comprometer a segurança na descida, pois esta parte do trilho é praticamente exposta ao vazio e qualquer queda poderá ter consequências severas. Esta situação de risco é um dos motivos pelo que considero o outro trilho (o que desce para a Candeeira desde o desvio para a Lagoa do Cântaro) uma muito melhor opção para chegar ao Vale da Candeeira.
Após a transposição desta laje mais exposta, ao chegar a um pequeno colo, existe um novo cruzamento. O trilho que aqui entronca com o nosso permite a ligação directa ao Vale do Zêzere pela vereda que desce pelo dorso do Espinhaço de Cão, uma curiosa formação geológica criada pelo depósito de grandes calhaus entre as massas glaciares do Zêzere e da Candeeira.
Meio zig-zag depois chegamos ao fundo do vale, mas agora é preciso atravessar a ribeira da Candeeira para seguir caminho. O trilho cruza a ribeira, mas não existe aqui qualquer forma de atravessamento durante boa parte do Inverno, o que obriga a arriscar o salto ou tirar as botas, arregaçar as calças e sentir a “frescura” extrema das águas da montanha. Apenas durante curtos períodos do ano, depois de grandes chuvadas ou no degelo, o caudal é demasiado e a travessia da ribeira não é de todo possível.
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Ponte Bolota
Após atravessar a ribeira da Candeeira há novo entrocamento com outro trilho. O nosso trilho segue para a esquerda, para subir o vale, mas o trilho que segue para a direita permite uma outra ligação ao Vale do Zêzere. Esse trilho, que conheço por “Vereda dos Altares“, encontra-se meio ao abandono apesar de ser um dos troços de ligação da PR5 MTG – Rota do Maciço Central, mas é um dos meus preferidos para chegar à Candeeira: sobe a encosta na diagonal desde o Zêzere para depois entrar numa zona de socalcos e trepadas, junto às cascatas formadas pela ribeira da Candeeira, que se precipita aos tropeções até ao Zêzere numa queda de 300 metros. E a chegada ao Vale da Candeeira pela Vereda dos Altares é simplesmente magnífica!
Seguimos o nosso trilho vale acima pela margem esquerda da ribeira até chegarmos à Ponte Bolota. Esta ponte foi uma iniciativa da ASE (Associação dos Amigos da Serra da Estrela), tendo sido carregada peça a peça por montanhistas e montada no local durante o Nevestrela de 2007. Sem esta ponte, as travessias da ribeira seriam bastante mais complicadas durante o Inverno. E é aqui que iremos novamente atravessar a ribeira.
trilho alternativo para chegar ao Vale da Candeeira
O nosso trilho irá agora subir o vale ao longo da margem direita da ribeira, mas é aqui junto à Ponte Bolota que vem desembocar o antigo trilho que anteriormente referi e que faz a ligação desde a vereda que dá acesso à Lagoa do Cântaro. Esse trilho tem estado a ser recuperado (por acção directa de montanhistas e não por autoridades que deveriam ser competentes) e muito em breve voltará a ser (a melhor) opção para chegar à Candeeira desde o Covão d’Ametade, em vez do trilho que temos estado a seguir. Quando o trilho estiver em condições de uso, volto aqui para actualizar este artigo!
O caminho agora faz-se ao longo do cervunal, praticamente sem trilho visível e a obrigar muita atenção a onde colocamos os pés. Aqui no fundo do vale, sempre que a ribeira transborda do seu leito por excesso de caudal, leva tudo na frente e vai modificando as próprias margens, por isso aqui os trilhos acabam por ser “dinâmicos” e obrigam a navegar à vista. É olhar para o GPS, tentar ver alguma mariola e seguir mais ou menos por ali.
E também “é mais ou menos por ali” que iremos voltar a atravessar a ribeira da Candeeira por 2 ou 3 vezes, sem trilho muito definido e procurando apontar à próxima mariola. Aqui a ribeira tem pouca profundidade ou até nem tem água (durante o verão) e é preciso passar a salto por entre os calhaus rolados.
Lagoa do Pachão
Depois de todas as travessias da ribeira, o trilho passa a seguir definitivamente pela margem esquerda (ou pelo lado direito de quem sobe, claro). A subida vai empinando, empinando, até que se transforma numa trepada quase vertical onde teremos muitas vezes que usar as mãos para ultrapassar os obstáculos. Nunca existem zonas realmente complicadas, mas para algumas pessoas poderá não ser uma dificuldade significativa.
E no topo desta trepada, chegamos à Lagoa do Pachão (ou do Peixão ou da Paixão, mas isso é outra história). Encimada pelo imponente Fragão do Poio dos Cães, a paisagem é verdadeiramente monumental. Já subi este trilho largas dezenas de vezes e continuo a sentir aquele arrepio bom sempre que chego à lagoa.
Quer pelo cenário, quer para repor o fôlego da trepada, é obrigatório fazer uma pausa. No Verão, é também o spot perfeito para dar um mergulho ou (pelo menos) meter os pés de molho.
Fragão do Poio dos Cães
Pausa feita, é hora de voltar ao caminho. Ainda há muito que subir (e que descer). O trilho contorna agora o imponente maciço do Poios dos Cães pela direita. A orientação é sempre mais ou menos fácil, pois o trilho aqui até está bem dotado de mariolas.
A rota “oficial” do PR5 MTG (a que está assinalada com as tais marcações pintadas a amarelo e vermelho) continua em subida até ao “Planalto da Expedição”, onde a grande “Expedição Scientífica da Sociedade de Geographia de Lisboa” terá montado campo base em 1881, mas para mim o desvio até ao topo do Fragão do Poio dos Cães é obrigatório. No mapa assinalo o trilho alternativo, mas a navegação será à vista até chegarmos ao grande dorso de granito.
Do topo do Poio dos Cães temos toda a Candeeira a nossos pés, desde a Lagoa do Pachão que está quase ali à distância de um mergulho, até à Ponte Bolota que mal se distingue lá no meio do grande vale. Façam um minuto de silêncio e imaginem todos os vossos passos até aqui. Imaginem todo aquele vale coberto de neve e gelo a escorregar devagarinho. Imaginem que, alguns milhares de anos depois, a neve terá derretido e dado lugar a densos bosques de Bétulas, Carvalhos, Tramazeiras e Teixos. Imaginem rebanhos de Cabras selvagens, Rebecos e Muflões a trepar penedos para escapar a alcateias de Lobos. Imaginem as primeiras vezes que as comunidades semi-nómadas do neolítico, ainda a descobrir como funcionava a pastorícia, aqui chegaram com os seus rebanhos para aproveitar os ricos pastos primaveris. Imaginem os rebanhos de milhares de ovelhas e cabras que aqui passaram a chegar em transumância todas as primaveras. Imaginem os carvoeiros que aqui vinham transformar as grossas raízes das Urzes em pilhas de carvão, que depois carregavam em mulas para as aldeias dos vales mais abaixo. Imaginem tudo o que este vale já aqui viu passar.
Hoje em dia os rebanhos da Serra já são poucos e há vários anos que já aqui não encontro o último pastor que aqui vinha. Fica pelo Vale do Zêzere, que as pernas já não devem dar para aqui chegar todos os dias. E, há falta de outros herbívoros, dos que cá andavam antes de terem sido exterminados pelo “progresso”, vai o mato ganhando espaço aos cervunais e aos nossos trilhos.
E, já agora que falamos em carvoeiros, terá sido pelas inúmeras pilhas de madeira que ardiam lentamente dia e noite, que este vale terá passado a ser conhecido por “a Candeeira”, um vale pontuado de candeios a alumiar a noite escura da montanha.
vista para o Cântaro Magro
Seguindo caminho, seja pelo trilho assinalado pelas marcas amarelas e vermelhas, seja pelo trilho atalhado pelo Poio dos Cães, seguimos em direcção às Salgadeiras e por uns instantes caminharemos em terreno razoavelmente plano (ver mapa).
No Covão da Clareza a lagoa já não tem a grandeza de outrora e encontra-se praticamente colmatada por sedimentos, que entretanto se converteram numa extensa turfeira húmida. O trilho contorna depois uma das lagoas das Salgadeiras e volta a apetecer uma curta pausa, pois iremos voltar a subir e a trepar.
O trilho segue agora de forma meio confusa por um mar de grandes blocos fracturados, passando depois a trilho “mais normal”, até chegarmos à cumeada. E, do topo da cumeada, ergue-se à nossa frente o imponente Cântaro Magro, com o Covão Cimeiro aos seus (e aos nossos) pés.
O Covão Cimeiro é um enorme anfiteatro natural, o maior da Serra da estrela, e onde começaria o extenso glaciar que deu forma ao Vale do Zêzere. De forma diferente dos rios, os glaciares escavam os vales assim de forma arredondada e criando este enormes ressaltos que muitas vezes vieram dar origem a lagoas. E é por isso que o Vale do Zêzere, com perfil em U, talvegue em degraus e na cabeceira este magnífico anfiteatro, é uma das grandes maravilhas geomorfológicas de Portugal.
Cântaro Gordo
Mas, esquecendo um pouco a paisagem à nossa direita, é no que temos em frente que precisamos nos concentrar: o Cântaro Gordo. O trilho “oficial” da Rota do Maciço Central não passa pelo cume do Cântaro Gordo, contornando a cumeada pelo seu lado direito. No entanto, eu (quase sempre) prefiro subir pela magnífica aresta Oeste para ir picar o ponto lá acima ao cume e descer pelo trilho mais à frente. No mapa têm assinaladas as duas opções.
O trilho que contorna o Cântaro, o tal “oficial” (ver foto – setas a azul), tem algumas deficiências de sinalização e atravessa uma zona de blocos de grandes dimensões, que é preciso navegar com alguma cautela. Alguns dos blocos, apesar das grandes dimensões, oscilam quando pisados e não convém dar uma de “127 Horas” e ficar com o braço entalado. Além disso, entre os blocos, existem grandes espaços vazios e onde uma queda poderia ter consequências menos agradáveis. Cautela, manter o foco, não perder o rumo e em pouco tempo chegam ao outro lado.
Se a opção for trepar ao cume do Cântaro Gordo (ver foto – setas a vermelho), há que sair do trilho ao chegar perto da aresta. Não existe caminho assinalado e nem é muito perceptível por onde devemos seguir: o objectivo é chegar à aresta e é para aí que devemos apontar. É preciso trepar uma zona de grandes blocos depositados na vertente do Cântaro, contornar um pequeno esporão rochoso e chegamos à aresta. A aresta é bastante “arejada” e, apesar de não ser uma trepada difícil, não é recomendada a quem tenha medo de alturas ou pouca experiência em actividades de montanha. Vejam as fotos para ter uma ideia de por onde seguir.
Covão Cimeiro
A descida do Cântaro Gordo em direcção ao Covão Cimeiro é bastante íngreme e traiçoeira. O trilho é também bastante mal definido, o que invariavelmente nos vai encaminhando por fora de trilho ao longo da descida. O risco de uma queda para o vazio é reduzido, mas facilmente uma escorregadela aqui pode dar origem a um braço partido, pois para além de íngreme o piso desagrega-se facilmente em pedras soltas e areão. Cuidados redobrados e atenção onde colocamos os pés.
Na montanha, a maior parte dos acidentes acontecem na descida. Em parte porque que estamos mais cansados, mas principalmente porque nos parece que o mais difícil já está feito e isso leva-nos a “levantar a guarda”. Com a experiência vamos aprendendo que é mesmo preciso manter o foco até lá abaixo, mas mesmo assim é fácil já ir com a cabeça noutro lado.
Nesta altura, também já o dia irá longo e iremos caminhar à sombra, ao lusco-fusco ou mesmo já depois do sol posto. Numa caminhada longa como esta, é importante irmos sempre prevenidos para qualquer derrapagem na previsão horária e por isso é fundamental trazer connosco uma lanterna ou frontal (e não, a luz do telemóvel não serve!!) e roupa extra para fazer face à descida das temperaturas.
regresso ao Covão d’Ametade
A parte mais complicada da descida do Cântaro Gordo é este troço até ao colo que dá acesso à Lagoa do Cântaro. A partir daqui o piso é bastante mais estável, apesar de continuarem a existir bastantes obstáculos a destrepar. Se o dia não for já demasiado longo, o Covão Cimeiro convida a uma nova pausa. Visto de cima já dá para perceber a sua imponência, mas cá de baixo é que nos sentimos mesmo pequeninos perante tal imensidão.
Já falta agora muito pouco para regressar ao Covão d’Ametade, onde começáramos esta aventura, mas o trilho ainda tem alguns desafios. Apesar de o trilho que liga estes dois covões ser bastante percorrido, a sua manutenção é reduzida e o trilho praticamente só se mantem aberto pelo uso. Infelizmente em Portugal valoriza-se muito pouco a manutenção especializada dos trilhos de natureza, apesar dos milhões de euros que disparatadamente têm sido gastos em passadiços.
Mas voltando ao nosso trilho, basta seguir as mariolas e as marcações pintadas. Nalguns sítios poderá parecer que existe mais do que uma opção e por isso recorram ao GPS para ajudar a perceber qual o melhor caminho. Ainda haverá um obstáculo ou outro que seja necessário destrepar, mas já não resta nada de complicado. E pronto, estamos de volta ao Covão d’Ametade!
Campismo no Covão d’Ametade
Situado na cabeceira do Vale Glaciário do Zêzere, o Covão d’Ametade é uma das áreas de lazer mais reconhecidas da Serra da Estrela. Envolvido pelos Cântaros e atravessado pelo Zêzere, que a partir daqui começa a ganhar corpo de rio, é lugar de visita obrigatória por montanhistas, famílias em passeio de domingo ou turistas meio perdidos à procura da neve.
Durante muitos anos, o Covão d’Ametade foi considerado uma “Área de Apoio ao Campismo”, numa espécie de “campo base” para escalar os Cântaros ou percorrer covões e planaltos. Nunca percebi bem a figura legal que enquadrava este espaço (ou se simplesmente era algum tipo de vazio na lei), mas o certo é que o campismo aqui sempre foi permitido e já lá terei dormido muitas mãos cheias de noites. Entretanto, não sei o que mudou, mas consta que agora isto já não será permitido (e o mesmo aconteceu no Covão da Ponte).
Pernoita na montanha
Em Portugal, a legislação não distingue a pernoita na montanha de outras formas de campismo claramente abusivas, mas a lei não é assim tão clara quanto isso. A pernoita em bivaque, com ou sem tenda, durante a travessia de uma Grande Rota dificilmente se poderia considerar “campismo”, mas à falta de legislação mais clara sobre o tema, vamos ficando sujeitos à interpretação que cada entidade competente possa vir a ter.
Noutras áreas de montanha europeias, como já aqui ao lado em Espanha, é frequente a existência de regulamentos específicos que definem em que circunstâncias se pode pernoitar na montanha e existem meios que efectivamente fazem esse controlo. Normalmente, a pernoita apenas é permitida em zonas específicas (ou a partir de determinada altitude) e apenas se pode montar a tenda 1 hora antes do pôr-do-sol, levantando acampamento até 1 hora após o amanhecer. Em Portugal a lei é vaga e não existem regulamentos específicos, mas também não existe efectiva vigilância (para além das estradas e caminhos acessíveis de carro).
Na prática, o que acontece por cá, é que esta forma de pernoita em actividades de montanha é bastante tolerada (desde que feita com boas práticas). As entidades sabem que existe, mas também sabem que não é um problema, apesar do desenquadramento legal. As situações abusivas, normalmente só ocorrem nas proximidades das estradas (não por montanhistas, mas por outros visitantes que não se sabem comportar na natureza).
Tendo tudo isto em conta, se pretenderem pernoitar na montanha durante uma caminhada mais longa (como por exemplo nesta rota pelo Vale da Candeeira), não o façam na proximidade de estradas, apenas montem a tenda ao fim do dia e levantem logo pela manhã, sejam discretos, não façam fogueiras, não deixem lixo e nem deixem qualquer marca da vossa passagem. Às vezes, a desobediência civil é a única forma que temos de combater as injustiças.
Dicas úteis
Como chegar: até agora a única forma de chegar ao Covão d’Ametade seria de carro, de táxi ou a pé, mas entretanto a Covilhã criou uma linha regular de autocarros a subir e descer a Serra. O autocarro não vai ao Covão d’Ametade, mas creio que não será complicado pedir ao motorista para nos deixar sair ao passar pela Nave de Sto. António e seguir a pé até ao Covão pelo trilho da PR6 – Rota do Glaciar. Vejam aqui a tabela de horários dos autocarros da Covilhã. Para quem for de carro existe estacionamento junto ao Covão d’Ametade.
Onde dormir: não faltam opções de alojamento a curta distância (de carro) do Covão d’Ametade, sendo os locais mais próximos Manteigas e as Penhas da Saúde. Dentro dos alojamentos que mais se enquadram no espírito de quem anda de mochila às costas, recomendo a Pousada da Juventude das Penhas da Saúde ou a Casa Mariolas em Manteigas.
Onde comer: em Manteigas há muitas opções de restaurantes, mas estou um pouco desactualizado nesta área, pelo que não faço aqui recomendações. Nas Penhas da Saúde recomendo a Casa do Clube ou a Varanda da Estrela.
Previsões meteorológicas locais: para além das previsões oficiais do IPMA, existem vários projectos locais de meteorologistas amadores, mas que têm um conhecimento do território que lhes permite ser muitas vezes mais assertivos. Destaco as previsões do Vitor Baia e o projecto MeteoEstrela.
Água: em condições normais, a ribeira da Candeeira tem água durante todo o ano, ainda que no Verão possa não estar a correr. Apesar de não existirem aqui fontes de poluição, podem existir contaminações superficiais (dejectos de animais, por exemplo) pelo que não deve ser bebida directamente. Se precisarem repor água no vosso cantil, usem sempre um filtro adequado ou pastilhas desinfectantes. Nas lagoas a água também poderá ser tratada e bebida, mas é sempre preferível optar por água corrente.
Rede de telecomunicações: a cobertura de rede é cada vez melhor na Serra da Estrela e ao longo desta caminhada vai quase sempre existindo alguma disponibilidade de rede (dependendo da rede). Mesmo que a vossa operadora não tenha cobertura nalgum ponto, o contacto de emergência para o 112 é quase sempre possível, com excepção se alguns pontos mais “escondidos” na montanha.
Contacto de emergência: para além dos normais serviços de emergência, na Serra da Estrela existe uma equipa especializada em situações de busca e resgate pertencente à GNR UEPS – Unidade de Emergência de Proteção e Socorro. O contacto poderá passar pelo 112 ou pelo número disponibilizado no site da GNR: 275 320 660 (Posto de Busca de Resgate em Montanha da Serra da Estrela – Covilhã).
[ guia para Backpacking ]
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Vestuário e equipamento recomendado
Apesar da altitude modesta da Serra da Estrela, caminhar na montanha envolve sempre bastantes riscos para quem vem desprevenido. Usem sempre vestuário adequado à época do ano e às previsões meteorológicas e, mesmo no Verão, nunca deixem o casaco impermeável (ou pelo menos corta vento) em casa.
No Inverno optem sempre por usar umas boas botas de caminhada impermeáveis. No Verão, o uso de botas continua a ser recomendado, principalmente quando carregamos uma mochila mais pesada. No Inverno, se houver neve, é recomendado o uso de polainas para impedir a entrada de neve para as botas.
O uso de bastões de caminhada é também bastante prático e recomendado. Nas zonas de trepadas mais técnicas os bastões irão atrapalhar um bocado, mas facilmente se “encolhem” e se guardam na mochila.
O vestuário deve ser leve e confortável. O ideal é usar roupa por camadas, que se podem vestir ou despir, e evitar casacos ou camisolas volumosas e pesadas. Para saberes mais sobre o sistema de vestuário em 3 camadas, lê aqui o artigo que escrevi para o site da Decathlon.
Evita roupas de algodão (calças de ganga, por exemplo), pois absorvem demasiada humidade e demoram a secar. O ideal será usar roupa em fibras sintéticas ou em lã de merino.
Para transportar connosco a roupa extra, comida, água e todo o equipamento que possamos precisar, o ideal é usar uma mochila com bom suporte e adequada para caminhar na montanha. No Verão, uma mochila com 20L de capacidade poderá ser suficiente, mas no Inverno poderá já ser recomendada uma mochila com cerca de 30L.
Levar connosco um mapa detalhado da região (como os mapas da Adventure Maps) é sempre boa ideia. No mapa temos uma melhor percepção do território à nossa volta e, caso o GPS falhe estamos sempre salvaguadados.
Se usarem o GPS no vosso telemóvel para orientação, é fundamental levar um powerbank com capacidade adequada. Usar o telemóvel em modo GPS consome bastante energia e não será a melhor ideia ficar sem GPS no meio da montanha (e sem telefone para ligar a pedir ajuda). Quanto maior a situação de risco (terreno que não conhecemos, condições invernais, etc) maior a importância de usar aparelhos separados para orientação e comunicação.
Mesmo em caminhadas que se preveem curtas e sem aparente dificuldade, quando estamos na montanha é sempre recomendado levar connosco uma laterna ou frontal. É frequente que as actividades na montanha se demorem mais do que o previsto e não faz sentido correr riscos desnecessários.
E claro, levem um saco para trazer de regresso o vosso lixo e mais algum que eventualmente encontrem pelo caminho. Infelizmente nem toda a gente que visita a Serra se sabe comportar na natureza, mas nós podemos fazer a diferença! #leavenotrace
faz o download do percurso
ficheiro .KML
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Atenção!
Todos os trilhos de acesso ao Vale da Candeeira são trilhos de montanha, naturalmente irregulares e que exigem muito boa condição física e destreza para ultrapassar obstáculos. Existem frequentes obstáculos que implicam trepar ou destrepar com ajuda das mãos, passagens expostas e com risco de queda, linhas de água que podem ser complicadas (ou impossíveis) de ultrapassar após períodos de chuva intensa ou durante o degelo, partes do trilho cobertas de gelo ou neve… Ou seja, o normal na montanha para quem está habituado a estas coisas, mas um cenário de grande risco para quem não faça ideia onde se vai meter.
Também é fundamental ter bons conhecimentos de orientação em terreno de montanha ou, pelo menos, ir acompanhado por alguém capaz de guiar a caminhada. Muitos dos trilhos da Serra da Estrela pecam por falta de gestão/manutenção adequada, sendo a sinalização dos trilhos muitas vezes de fraca qualidade ou inexistente. Nestes trilhos mais remotos e menos percorridos, a orientação é ainda dificultada pelo pela vegetação que ocupa os trilhos, pela falta de manutenção e pelo pouco uso dos trilhos.
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